sexta-feira, 16 de julho de 2010

Primeiras Pílulas do Livro...

Final de tarde, agosto, o cheiro de terra úmida exalava do chão.

Umidade misturada com a terra vermelha, os sentidos afloravam de uma forma inexplicável...

Sensação de “deja vu” (já estive aqui)? Quando? Será que a excitação provocada pelo momento, é suficiente para alterar todos os meus sentidos!

Calicas e Féfé chegaram um belo dia, lá para os meados de Maio, (sim Maio de mil novecentos e noventa e quatro) estava eu a beber um café com uma amarguinha, (licor de amêndoa amarga) na nossa gelataria, onde o pessoal se encontrava quase que sistematicamente.

A Gelataria era uma espécie de café, ponto de encontro de todos nós, Passagem obrigatória para colocar a prosa em dia...
Ricardo vamos para o Brasil...
(Aqui começou toda a minha história e o que me levou a escrever este livro). 

A desconfiança surgiu do nada, até então nada suporia que algo como o que estava a acontecer pudesse surgir sem nenhuma justificação. O porquê do convite! Recordo-me perfeitamente – Cara de admiração...! Eram meus amigos, curtíamos para valer, tivemos momentos ótimos, mas passar férias no Brasil os três sozinhos! Sem as namoradas! Que estranho...!

Na altura eu namorava com Rita, que veio a ser mãe dos meus dois únicos filhos. (gêmeos)

O nome Brasil, por si só cheirava a tropical uma mistura de áfrica (Angola) com Portugal e com os povos indígenas. Veio-me á mente a grande questão da colonização e talvez o que de mais importante os Portugueses fizeram nas ex-colônias, a mistura de raças, miscigenação. Nenhum outro povo conseguiu criar esta irmandade hoje em dia tão respeitada, como os Portugueses.

Nascido em Angola, falar do Brasil era falar de África... Do som, do cheiro, da tonalidade e das tonalidades das gentes, das prosas, do mar... Imenso mar, águas quentes, pôr do sol, noites longas, luar, acordar...

Enfim, era verdade íamos para o Brasil... E logo para a Bahia – Salvador... Quem diria...

Bahia, mais tarde vim a descobrir que realmente é a terra da magia e da alegria.

O sentimento de já ter estado em determinado lugar, ocorre de uma forma intrínseca e imediata. O momento é vivido em duplicado e naquele final de tarde eu sentia que já tinha passado por ali.

Desembarcamos e fomos para um local...
Vim, a saber, um dia, que era Itaparica, terra de João Ubaldo Ribeiro.
A minha relação com Itaparica veio a tornar-se muito intensa... É uma ilha que fica na Bahia de todos os Santos e onde nada acontece por acaso, mas onde tudo existe, através da energia duradoura.

O tempo parou em Itaparica, mas parou de uma forma solene e benéfica... Que beleza, poder desfrutar do tempo... E utilizá-lo sem pensar em gastá-lo...
O nosso desejo era que as nossas férias se prolongassem por dias a fio, sem a necessidade nem a preocupação do retorno.

Viajamos imenso, conhecemos alguma parte do litoral da Bahia – Morro de São Paulo – Itacaré e em Ilhéus assistimos ao sete de setembro, coincidência ou não, dia da Independência do Brasil.

Havia em nós já nessa altura, a noção de uma aculturação.
Refiro-me á quantidade de novos sinais identificativos que aprendemos a utilizar através da televisão.

As novelas Brasileiras vieram sem margem para dúvida, agregar ao quotidiano dos Portugueses novos sinais de identificação cultural.

Claro que estávamos receptivos a descobrir, novos ritmos, novos sons e novas formas de vivência, que aprendemos a respeitar a partir do momento que Jorge Amado – com a sua linguagem realista entrou nas nossas casas através da novela “Gabriela Cravo e Canela” a primeira novela Brasileira a passar em Portugal.

Ilhéus – Terra do Cacau – Recorda-me perfeitamente como se fosse hoje – tínhamos alugado em Valença (perto do Morro de São Paulo) um Fiat Uno e ao chegarmos – pairava no ar, um cheiro tão agradável de cacau – naquele momento preciso, eu identifiquei, o que Jorge Amado sempre nos quis dizer através da sua escrita. Eu estava ali sentindo através do cheiro – o que a Bahia tinha para mostrar.
Ás vezes basta uma descrição, para quando vivenciamos o momento sabermos que é verdadeiro.

Que extraordinário termos a possibilidade de viajar, mais que não seja através da imaginação.

A magia da Bahia a que eu me refiro, começou a partir deste momento a aparecer ao meu olfato como primeiro sinal do que estava para vir. E o que viria era talvez algo impensável nesta altura.

Retornamos a Salvador.

A cidade toda ela é cheia de Luz de vida e fundamentalmente de cores. Todo o santo dia é dia de festa e que festas.
O baiano é super comunicativo, expansivo, gosta de sentir de tocar de abraçar – igual ao africano – Descobri imensa identificação com Angola, o cheiro de Dendê (em Angola é óleo de Palma – da Palmeira) o pirão, os ritmos constantes nas ruas, a beleza inconfundível da negritude – a cor de ébano a mistura de gentes, mas o que mais me impressionou foi à simplicidade das gentes do povo.

Não existe tristeza, nas faces das pessoas – apesar de algum descaso social por parte de quem de direito, os Baianos são imensamente bonitos, porque são simplesmente alegres.

Fomos a um lugar chamado Pelourinho – que fica no centro Histórico da cidade de Salvador, na parte alta da cidade. O pelourinho é um lugar mágico, onde se encontram todas as confluências culturais e sociais da cidade. Lá habitam músicos, artistas plásticos, artistas de rua, passeando naquelas ladeiras de calçada Portuguesa, encontramos a cada esquina – alguém fazendo tranças no cabelo de algum curioso querendo mudar de visual, alguém pintando, é lá onde fica a Fundação Jorge Amado – e algumas das mais belas igrejas de Salvador.

Um amigo comum conduzia-nos pelas ruelas do Pelo – e a cada olhar fomos descobrindo um pouco de Lisboa – Sem dúvida a identificação é inegável, os parapeitos das janelas, as portas das casas, a cor das mesmas, transportava-nos para a bela e bucólica Alfama. Com um simples olhar estávamos algures na cidade do Tejo...

O nosso cicerone e amigo que vivia em Itaparica, tinha-nos falado que ás terca-feiras, havia um ensaio de um grupo que fazia as pessoas ir ao delírio com as suas batucadas ritmadas, segundo ele era uma mistura de Afro-Reagee e que nós íamos adorar. O ensaio começaria por volta das oito horas da noite.

Aproximamo-nos, era uma casa antiga, a fachada um pouco abandonada, mas para nós era uma excitação imensa, compramos o ingresso, subimos umas escadas e fomos ter a um pátio – uma área aberta, ao ar livre, com imensa gente conversando descontraidamente e aguardando pelo inicio do show.

Querem beber o quê? Cerveja claro - respondeu o nosso cicerone, não devem beber nada destilado, pode ser falsificado, nesse instante já o grande Calicas trazia algumas cervejas de lata com ele – toma Ricardo, obrigado amigão, as próximas são minhas ok! Tu é que mandas, respondeu Féfé com o seu ar de brincalhão feliz e assim continuamos por alguns momentos, aguardando pelo inicio do show. Foram chegando cada vez mais pessoas, estávamos todos de pé, não havia cadeiras nem ordem de posicionamento...

De repente, começo a ouvir uma batucada intensa e ritmada, nunca tinha presenciado nada igual... Era talvez uns quinze homens negros, cada um, com um tambor pendurado através de uma fita ao seu pescoço. Os tambores eram pintados com um grafismo verde e amarelo, lembrando um pouco o desenho das panos que as mulheres negras usam no congo e angola- ou seriam as cores da Jamaica! Não sei, comecei a ficar confuso e lá no fundo (já era noite cerrada o céu carregava algumas estrelas, tinha chovido e a noite estava fresca) surgiu uma voz OH OH OH OH ROSAA, OH OH OH OH ROSAA, ALEGRIA CIDADE CANTAA SALVADOR, OH OH OH OH ROSAA, OH OH OH OH ROSAA, ALEGRIA CIDADE CANTAA SALVADOR, era o Olodum, que loucura, o pessoal começou a dançar a movimentar-se acompanhando o som e o ritmo cada vez mais constante da batucada e que batucada. É um ritmo frenético, os tambores parecem que falam toda a mesma língua, sincronizados acompanhando a voz só com um microfone, a batucada não para, ela é contínua somente com algumas nuances de ritmo, agora é mais intensa e a galera quase que entra em êxtase ou será transe, eu olhava para frente e via os meus amigos dançando continuamente sem parar, transpirando toda aquela energia que existia ali naquele momento, como se o som estivesse em comunhão com as nossas almas.

Que experiência, que energia, jamais esquecerei...